Semana passada fui surpreendida pelos comentários em uma postagem que mostrava o total de óbitos no Brasil em decorrência da COVID-19. Foi surpreendente perceber que aqueles números não eram só números, eram pais, mães, avós, sobrinhos, adultos, crianças, tios. Eram pessoas como você e como eu. Praticamente todos os seguidores da página haviam perdido algum ente querido em decorrência da COVID. Era impossível ler aqueles comentários e não sentir a dor e a tristeza daquelas pessoas e confesso que foi constrangedor também. Constrangedor porque percebi o quanto estamos cauterizados.
É triste, mas estamos cauterizados. Cauterizar é tornar insensível, indiferente; anestesiar, neutralizar. E é assim que nos encontramos nesse momento.
Na semana de reabertura do comércio em algumas cidades pessoas se aglomeraram sem qualquer proteção em bares e fizeram filas para entrar em shoppings e lojas de departamento. Fiscais sanitários que estavam ali trabalhando pela conscientização e proteção da população foram humilhados, questionados e agredidos por cidadãos e cidadãs que acreditam ser melhores que outros simplesmente por portar um diploma de nível superior, ter uma carreira na magistratura ou morar num bairro nobre qualquer de uma zona sul qualquer em uma metrópole qualquer.
É triste, mas estamos cauterizados.
No interior não é diferente. Pelas ruas da nossa cidade pessoas discutem com comerciários para entrar sem máscara nos estabelecimentos comerciais. Fungam em nosso pescoço na fila do supermercado e quando pedimos para se afastarem nos respondem com grosseira e indignação. Nos finais de semana churrasco, álcool, paredão. Mesmo quando estamos beirando os 90 casos confirmados. Cobra-se fiscalização da gestão, mas o principal nós deixamos de fazer: A nossa parte.
É triste, mas estamos cauterizados.
Em abril uma grande amiga perdeu a mãe para essa triste enfermidade. Essa semana um colega de trabalho perdeu a irmã. As pessoas estão morrendo, mas nós estamos preocupados em voltar ao normal. Estamos preocupados em consumir. Estamos preocupados com a aparência, com quilos a mais ou a menos na balança. Estamos preocupados e incomodados com a presença de nossos filhos em casa e com as aulas remotas. As nossas e as deles.
É triste, mas estamos cauterizados.
Já não nos importamos com a dor do outro. Já não damos mais importância para o número de vidas que foram interrompidas, que a propósito nesta semana já passam das 90 mil. São 90 mil sonhos e projetos enterrados sem despedida, 90 mil famílias que choram, mas se não é comigo, está tudo bem. O mais interessante é que isso acontece em um país cuja maioria da população se declara cristã. São 84% entre católicos, protestantes e espíritas. Uma massa que parece ter esquecido as palavras de Paulo: “chorem com os que choram. (Romanos 12:15)” Nós não nos importamos mais. Nós não choramos mais com os que choram tampouco os consolamos. Estamos muito mais preocupados decidir quem pode ou não ser protagonista da campanha de uma multinacional para o dia dos pais e promover um boicote à empresa, caso o escolhido não obedeça aos nossos padrões.
É triste, mas estamos cauterizados.
Nossa mente se cauterizou e com ela o nosso coração. Ter uma mente e um coração cauterizados significa dizer que eles se encontram “mortos” e fechados; insensíveis . Uma mente cauterizada perdeu sua função, a capacidade de raciocinar e não consegue mais discernir o que é certo e o que é errado. De tanto dar ouvidos a notícias falsas, teorias conspiratórias, fanatismo político e religioso tudo o que tem acontecido já se tornou normal, a consciência não nos incomoda mais nem pelo que fazemos, nem pelo que deixamos de fazer.
O apóstolo Paulo em sua 1ª Carta a Timóteo nos alerta sobre o perigo das mentes cauterizadas: “O Senhor diz claramente que haverá tempos em que muitos abandonarão seus ensinamentos e darão atenção a profetas enganadores e a seus ensinamentos que não vem de Deus. Esses ensinamentos são espalhados por pessoas hipócritas e mentirosas, cuja consciência está cauterizada. (1 Timóteo 4: 1-2)”
Precisamos estar atentos para não nos esganar com esses discursos carregados de insensibilidade para que não caiamos no erro de nos tornar iguais a essas pessoas. Elas estão por toda parte, na política, na igreja, na escola, na família. Precisamos de sabedoria para identifica-las e combater esse discurso falso e enganador que faz de nós seres desumanizados.
Não há virtude alguma no que esta acontecendo. Também não é um castigo de Deus ou da natureza, ou uma guerra, como o poder político com suas mentes cauterizadas nos faz acreditar, quando o momento deveria ser o de desenvolver o sentido da empatia, da solidariedade, do cuidado, do conhecimento e da cooperação e do amor ao próximo.
Esta é uma crise sanitária, resultado de uma pandemia momentânea, que expôs não apenas insuficiências estruturais do nosso sistema econômico, político, cultural e de saúde, mas também a nossa sujeira na alma e a nossa desumanização e que terá consequências graves nos mais diversos aspectos da nossa existência.
É triste, mas estamos cauterizados. No entanto, é possível voltar atrás, sempre.
Cuide de você mesmo e tenha cuidado com o que aprende e ensina. Seja constante, pois assim você libertará tanto a si mesmo quanto aos que te escutam.
1 Timóteo 4:16
Juliana Maria
04.08.2020
#FiqueEmCasa
Juliana Maria é servidora pública, discente do curso de letras da Universidade do Estado da Bahia, nordestina de coração, alma e espírito, mãe solo, cristã protestante, Líder de Jovens da Primeira Igreja Batista em Euclides da Cunha e nas horas vagas “escrevinhadora”.
Sim. Estamos cauterizados. Eu revoltada e amargurada. Ñ suporto ingratidão.
bom dia,belo texto,reflexivo e produtivo.As pessoas estão esquecendo da parte humana e apenas querendo se auto promover em cima da situao(pandemia).
Belo texto Juliana,que através destas palavras sábias possamos nos tornar seres melhores.
Nos estamos na mesma tempestade e não no mesmo barco.